O diário(1) solicitado ontem não se encontra na mochila do Menino.
Gostaria de ter pistas de quais atividades lhe agradam e quais lhe aborrecem, para que haja sucesso no jogo do desenvolvimento proximal.
Também descobrir o repertório musical trabalhado com ele e explorar seu gosto pela música.
Sem ter a mínima noção por onde começar, após o café fomos direto para a sala de aula.
Era aula de língua portuguesa e trabalhavam a interpretação dum texto do navegador Almir Klink.
Lembro que no primeiro dia vi um caderno de cartografia na mochila do Menino repleto de diferentes formas de formar seu nome.
Peguei o caderno novo de cartografia do Menino e contei a ele a história do navegador Almir Klink, escrevendo o nome do navegador no seu caderno.
Depois escrevi o nome do Menino fazendo relação com as letras dos nomes dos dois.
Após um breve intervalo de silêncio, O Menino fechou o caderno e guardou-o na mochila.
Sentou-se solene como sempre faz, com ambas mãos expostas sobre a mesa. A professora de língua portuguesa veio sugerir trabalhar com as letras do nome do Menino.
Saiu da sala de aula e voltou com letras em E.V.A., posicionou-as na mesa do Menino e perguntou segurando uma letra: “-que letrinha é esta?” dando a resposta em seguida: “ -é a letra que começa o nome do Menino”.
Ele olhou nos olhos dela, depois pra mim, fez um gesto como se tirasse alguma poeira da ponta do nariz e fixou seus olhos na mesa. Não prestando atenção em nada que ela dissesse ou nos movimentos com as letras coloridas.
Vendo que não obtivera resultado, sugeriu que eu prosseguisse com a atividade.
O Menino acompanhou atento o deslocamento da professora até a mesa dela.
Depois pegou a letra de E.V.A. que iniciava o seu nome e olhando pra mim, rasgou-a e entregou-me.
A quantos anos ele é obrigado a conhecer a primeira letra do seu próprio nome? Será que ninguém percebe que ele já entendeu e quer ir além?
De imediato lembrei do Prof. Pacheco
contando seu primeiro dia na Escola da Ponte na Vila das Aves em Portugal
Disse a ele:”vamos guardar”.
Estendi a mão aberta e ele depositou todas as letras, uma a uma, na palma da minha mão. Coloquei num montinho sobre minha mesa.
Nitidamente a professora não gostou de ver as letrinhas paradas na minha mesa. Demonstrou grande impaciência e O Menino também. Não sei qual a hostilidade que ambos compartilham.
De repente ele tirou um dos chinelos e jogou-o ao outro lado da sala de aula; um colega quis xingá-lo. Fiz sinal para não fazer nada.
A professora não gostou mas não se pronunciou. Todos enfatizam que devo impor limites ao Menino.
Alguns minutos depois, lançou o outro pé de chinelo, alguém falou: “que feio! Vá buscar.”
Respondi para deixar os chinelos onde estavam e que O Menino não os buscaria porque não os queria mais, pois jogou-os fora.
Ele fixou-me com um olhar “por baixo”. Sabendo do seu histórico de agressividade e mesmo não gostando dos métodos do Skiner(2), apliquei um recurso que funciona com animais. Que é o do contato visual.
Na verdade tratava-se de um longo “jogo do sério”. Fixei meus olhos nos dele e permaneci assim até soar o sinal para a merenda.
Enquanto mantive o contato visual ele não se atreveu a fazer qualquer movimento. Apenas com os olhos, tentando fugir dos meus.
Senti-me PÉSSIMO!
Nos primeiros minutos do recreio, ele jogou um dos chinelos. Não falei nada.
Depois de alguns minutos lançou o outro na mesma direção.
Uma criança quis juntá-los. Pedi que os deixassem no cantinho porque O Menino não os queria mais pois jogou-os fora.
Passou o recreio inteiro descalço sentado no banco interagindo com palhaçadas de meninos de outras turmas(3).
Segundo o horário escolar a próxima aula será de ciências. Na cópia que recebi há um risco a lápis sobre a palavra ciências e escrito abaixo música.
Com esta (des)informação não tinha ideia do que aconteceria a seguir.
Quando soou o sinal para o término do recreio vi a professora de música passar. Levantei-me rápido e fui direto ao ponto, ela até assustou-se.
“- No horário do Menino, a próxima aula está riscada e diz 'música'. A aula é contigo?”
Antes que me respondesse “não”, ouvi gritos de meninas.
O Menino havia baixado até aos pés, sua bermuda e cueca.
Corri para vestí-lo mas só deu tempo para coletar suas roupas do chão e correr atrás dele.
Segurei suas roupas na frente da barriga, cobrindo suas genitais, calçamos os chinelos e fomos ao banheiro para vestí-lo.
Ficamos pouco tempo na sala de aula. Descemos para o pátio e sentamos no mesmo banco.
Busquei o dado de pano que ele gostou de brincar ontem.
Jogamos umas duas ou três vezes um para o outro. Ele segurou o dado, levantou-se e foi até o baú de materiais para o recreio e depositou o dado lá.
Por ter uma mente ativa e criativa não se condiciona a atividades repetitivas programaticamente impostas.
Isto demonstra que O Menino não tem deficit cognitivo que deva se considerar como retardo mental.
Pena que não fala, foi condicionado a esperar que outros (família e agora professores) adivinhem o que ele quer.
Aquele diário faz falta.
(1) caderno onde o outro estagiário anotava as atividades diárias
(2) na sala de professores falei disto e tive o mesmo mau estar que senti no 1º dia quando falei de Wygotsky. Senti-me um alienígena falando algo diferente deste mundo e uma hostilidade dos demais que não sabiam do que se tratava o assunto me tratando como snobe.
(3) me pareciam mais provocações do que brincadeiras.