Alguns meses antes de ser contratado, pessoas que já trabalharam com este menino me alertaram:
"Ele tem transtornos psicóticos." "Ele não fala e é agressivo." "Cuidado! Jamais deixe objetos ponteagudos perto dele, como canetas e tesouras." "Ele agride a própria mãe!" " Ele rasga os cadernos dos colégas e joga est
ojos e mochilas pela janela."
Aqui relato minhas experiências diárias como professor auxiliar num programa de inclusão numa escola pública de uma cidade agrícula no interior do sul do Brasil. Num total de 13 encontros.

Dia 06, segunda feira

No primeiro dia de aula a coordenadora pedagógica da escola me avisou que estava incumbido de ensinar O Menino a escovar os dentes, censurando a mãe do menino que foi incapaz de fazer isto em 15 anos, transferindo a nós este compromisso.

Já que o outro estagiário o ensinou a fazer xixi em pé(1), eu deveria ensiná-lo a escovar os dentes.

Hoje chegou a escova e o creme dental. Encontrei estes objetos na sua mochila enquanto ele tomava café.

Tirei os objetos e coloquei-os sobre o banco.

O Menino largou a comida, baixou a cabeça e passou a me olhar “por baixo”.

Em homenagem a agradável e feliz experiencia da última sexta feira, resolvi não aborrece-lo.

Disse a ele: 'Hoje não. Vamos guardar isto.' Guardei os objetos em sua mochila; ele voltou a comer.

Vou comprar uma escova igual a dele e vou pedir que ele me acompanhe enquanto 'eu' escovo meus dentes.

Talvez por não ser obrigado a fazer, me imite na escovação.

Fomos à aula de História, falavam da Idade Média. Esteve tranquilo e silencioso durante todo o tempo.

Levantou-se silencioso e saiu da sala de aula, foi até a sala de informática e posicionou duas cadeiras voltadas pra TV e sentou-se, sentei-me na cadeira ao lado.

Depois de um tempo levantou, colocou as cadeiras em seus devidos lugares e voltou à aula.

Durante o recreio ficamos caminhando pelo pátio para evitar as brincadeiras provocativas e agressivas dos meninos ditos normais.

Segurava sua mão sempre que estes meninos se aproximavam. Estando de mãos dadas desencorajo os chutes, empurrões, encontrões e cuspidas que os normais dão no Menino.

O Menino passou a segurar com firmeza minha mão, não deixando que o solte. Ele tem medo e sente-se seguro comigo.

Fascinante é o modo como ele observa as meninas de 7ª e 8ª séries, apenas estas, as demais ele nem nota.

Fico feliz porque é um comportamento típico de um menino de 15 anos. 
 
Ele está vivendo seus 15 anos. Ele é um adolescente de 15 anos e com certeza não tem retardo mental.

O dia foi tranquilo. O Menino comportou-se pacificamente e des de quarta feira não lançou nenhum objeto.


        (1) alegaram que isto é importante pra definição da sexualidade. não pensam que isto gera mais trabalho pra mãe que vai ter que limpar o banheiro sempre que ele for fazer xixi. todos sabem que uso de medicamentos deixa a urina com odor forte.

Dia 05, sexta feira


Quando O Menino chegou à escola, havia uma movimentação intensa de alunos no pátio, posicionando-se para uma 'hora cívica'.

Não sabendo como funcionam as coisas por aqui, posicionamo-nos com os outros alunos.

Ao ver a coordenadora pedagógica da escola fui ao seu encontro e perguntei se devíamos ficar ali.

Ela perguntou se ele havia tomado seu café, respondi: chegou agora.

Explicou-me que independente de qualquer atividade da escola, primeiro deve-se levar O Menino pra tomar café.

Fomos à cozinha, sentamos noutro banco do pátio.

Durante a execução do Hino Nacional, cantei parte dele.

O Menino sorria expondo todos os dentes.

É a primeira vez que vejo seus dentes.

Continuei cantando. Ele fez um gesto junto as costelas como quem toca violão.

Falei: 'Isto mesmo! Depois que eles saírem vamos tocar violão.'

Na biblioteca(1) com os instrumentos, repetimos a atividade do dia 02.

Desta vez, enquanto tocávamos, improvisei vocalizes no estilo bip-bop, na intenção de motivá-lo a imitar-me.

São sons divertidos e de fácil dicção.

Uma professora abriu a porta da sala, me encarou com olhar repreensivo, não disse nada e fechou a porta com extrema violência.

Considerando que não fui comunicado possível incomodo gerado pela música e que a coordenação da escola decidiu que devo substituir a professora de música nas atividades de musicalização, continuamos nossa suave melodia.

Durante o recreio os alunos da outra 6ª série vieram brincar com o Menino enquanto estávamos sentados no banco.

Eles se divertiam e novamente senti a desconfortável sensação de trote quando as brincadeiras dos ditos normais tornaram-se agressivas.

Pedi que parassem e que deixassem o Menino em paz.

A solução foi passear com O Menino pelo pátio de mãos dadas.

Descobri que enquanto segurava a mão do Menino estes meninos, que nos seguiam, não davam empurrões, nem encontrões e nem chutavam seus calcanhares enquanto caminhávamos.

Na sala de aula seu comportamento foi surpreendente.

A turma foi dividida em grupos para trabalharem aquele texto do Almir Klink (2).

Nosso grupo era o mais inquieto. Com cochichos e risadinhas divertidas.

Embora a professora de Língua Portuguesa tenha odiado e socializava seu aborrecimento com a turma, deixei-o a vontade para observar as reações.


Até este dia não sabia se O Menino tinha dentes. Ele sorria mostrando todos.

O Menino começou a fazer carinho com a mão aberta, como aquele que fazemos nos bebes dando delicados e repetidos 'tapinhas', na parte de cima das mãos dos colegas.

Depois começou a fazer massagens nos ombros dos colegas.

Ele é um menino carinhoso que presa a afetividade.

Hoje é o segundo dia consecutivo que não lançou objetos.

    1. na verdade trata-se de um depósito de materiais gerais; deveria receber a identificação de almoxarifado.

Dia 04, quinta feira


Finalmente poderei consultar o diário do outro estagiário.

Aproveito o momento em que O Menino faz seu café para lê-lo.

O diário é horroroso!

Não diz nada que seja útil para quem tem a tarefa de dar continuidade a um trabalho de inclusão.

Não há descrição das atividades, limita-se a um paragrafo de poucas linhas. Algo como: “hoje trabalhamos com as letras do nome do Menino ”.

Não há referencia alguma do repertório usado nas atividades de musicalização.

A única referencia que encontrei foi de um dia que ficou só na escola(1) e dançaram a coreografia do “ai, ai, se eu te pego”

Durante a aula de matemática resolveu ajeitar os mapas presos na janela ao nosso lado.

Depois penduramo-os na parede do fundo. Ficou melhor.

Tem dois meninos , ambos com mesmo nome, que se divertem muito com O Menino.

Um é mais esperto, do tipo “mau aluno inteligente”, faz caretas e gesticula pro Menino, e este o acompanha.

O outro é dispersivo, um falso malandro; faz qualquer coisa pra não fazer nada, sempre atrasado nas tarefas e em voz alta fica incitando O Menino para folia e chamando a atenção da turma para verem O Menino.

É boa a interação mas indevida.

O trabalho de inclusão não deve incluir perturbação das atividades escolares das demais crianças.

Um dos meninos, cobre o rosto com as mãos e de súbito descobre o rosto virando-se e dizendo: “boo”.

O Menino ri muito e repete a brincadeira.

O recreio pareceu animado até a chegada daqueles meninos que ontem brincavam com O Menino.

Foi difícil fazê-los parar de tentar ensinar O Menino a “brincadeira do momento”.

Eles seguram o braço do Menino, fecham sua mão e direcionam para a genitália de um dos colegas dizendo: “Bate forte, assim. É divertido.”

Durante toda a semana vi meninos correndo e soqueando livremente seus testículos durante a hora do recreio.

Parece que as professoras de plantão divertem-se com as caretas dos meninos alvejados.

Minutos antes de soar o sinal as brincadeiras tornaram-se estúpidas.

Começaram a puxar O Menino pelos braços e empurravam uns aos outros com violência sobre O Menino.

Quando voltamos a sala de aula O Menino estava bastante agitado e seus colegas ainda mais.

Haviam jogado futebol durante o recreio, eufóricos falavam muito alto e batucavam nas mesas.

O Menino acompanhava o batuque.

Para tirá-lo daquele ambiente elétrico, a professora de artes pediu que O Menino ajudasse a levar os rolos de papel higiênicos pra cozinha.

O Menino é prestativo e gosta de organizar as coisas.

Descendo as escadas, O Menino foi me entregando seus rolos de papel higiênicos, um a um.

Quando estava com as mãos vazias, já no piso térreo, empurrou-me na altura dos ombros, usando as duas mãos (como lhe fazem os meninos da outra turma).

Não entendi esta reação.

Se fez por achar divertido ou pra protestar achando que sou o responsável pelo fim da folia da sala de aula.

Depois fomos até a biblioteca separar alguns potes de tinta.

A professora entrega o pote ao Menino e ele deposita na caixa que seguro.

Mudamos de local na sala e a caixa começa a ficar pesada.

Por segundos abaixei-me para por a caixa no chão e buscar uma cadeira.

Não falei a ninguém desta minha intenção, apenas abaixei-me.

Aproveitando este momento, O Menino abriu um pote de 250ml de tinta acrílica e despejou na minha cabeça.

Fantástico! Muito bom!

Uma prova contundente de que seu cérebro é ativo, capaz de criar improvisos a partir de situações inusitadas.

Contrariando o suposto atestado de psicótico, que é aquele que planeja seus atos e não descansa até que os execute, O Menino foi espontâneo.

Se ele imitou alguma cena da TV, não sei.

Mesmo se for, associar o fato de ter um pote de tinta na mão, ver alguém que deveria estar em pé baixar-se, num impeto abrir o pote e antes que o outro levante derramar na sua cabeça é porque as sinapses estão acontecendo.

Ele não é um retardado mental.

(1 )neste dia a escola participou das olimpíadas de matemática