Alguns meses antes de ser contratado, pessoas que já trabalharam com este menino me alertaram:
"Ele tem transtornos psicóticos." "Ele não fala e é agressivo." "Cuidado! Jamais deixe objetos ponteagudos perto dele, como canetas e tesouras." "Ele agride a própria mãe!" " Ele rasga os cadernos dos colégas e joga est
ojos e mochilas pela janela."
Aqui relato minhas experiências diárias como professor auxiliar num programa de inclusão numa escola pública de uma cidade agrícula no interior do sul do Brasil. Num total de 13 encontros.

Dia 02, terça feira


O Menino chegou sorrindo.

Durante o café(1) notei que é bidestro.

Manipula a caneca e leva o alimento a boca com ambas mãos com a mesma destreza.

Agora teremos aula de Educação Física.

A coordenadora pedagógica da escola alertou-me que O Menino teve algumas crises durante as férias de verão, possivelmente com implicações cardíacas.(2)

Por precaução a escola decidiu não deixá-lo participar das atividades físicas.

O Menino ficou impaciente. Começou a jogar seu chinelo longe.

Estava aborrecido por não poder correr e brincar de bola com os colegas.

Cada vez que jogava seu chinelo, algum professor ou funcionário da escola, fazia cara de brabo e mandava-o buscar o chinelo dizendo:

Isto é feio!” “Não faça mais!”

Ele baixava os olhos e ia buscar a sandália, punha-a no pé e voltava a sentar-se.

Quando o adulto saía ou dava as costas, O Menino mudava a expressão facial.

Havia uma satisfação.

Não se tratava de “malcriação”, não era pelo ato de transgredir. Era pela atenção exclusiva recebida.

O ato de ser xingado era uma espécie de carinho as avessas.

Neste período, quando alguém vinha me pedir rigidez, eu explicava que também estava aborrecido por ter que ficar sentado vendo os outros brincarem.

Quando tocavam no assunto de que “não poderia” participar da aula, O Menino fixava os olhos no chão.

Em dois momentos vi lágrimas correndo no seu rosto. Ambos após ouvir que “não pode brincar”.

Mesmo sem ser especialista no assunto e nem ter trabalhado na área, sempre digo que o que define um trissomia 21 é o fato de ter um cromossomo duplicado e não falta de cérebro.

Ele é menino de 15 anos, inteligente, que compreende tudo a sua volta.

Por desinformação e graças ao senso comum, portadores da síndrome são tratados des de bebes como incapazes.

Trate alguém como estúpido des de pequeno e quando adulto é isto que ele será”

Não será num trabalho de “inclusão” de algumas horas que irá desfazer o condicionamento comportamental de uma vida toda (acho que nem aplicando Skiner).

Procurei na mochila do menino o diário do antigo professor que vi ontem, não encontrei.

Queria pistas das atividades que ele gosta de fazer e das que o aborrecem e achar uma maneira de apaziguar o menino.

Falei com a coordenadora pedagógica que queria ver o diário, ela disse que é dele e esta em casa. Que devo mandar um recado pra mãe do aluno para que coloque na mochila e não posso levá-lo para consulta. Deve ficar na mochila do aluno.

O jogo do chinelo continuou durante o recreio.

A forma de manter o chinelo no seu pé foi convidá-lo a caminhar em volta da escola.

Acho curioso a forma como ele olha para as meninas da 7ª e 8ª séries. Somente estas, as outras menores ele nem nota.

Demonstra uma expressão tranquila, corre os olhos dos pés a cabeça da menina, depois fixa o olhar por alguns segundos no rosto dela.

Se for um grupo, segue o ritual uma a uma.

Após o recreio decidi não levá-lo a sala de aula. Fomos a biblioteca. Sabia do seu gosto pela bandinha(3).

Li nos relatos, ontem, que ele gosta de música. Não havia referencia alguma do repertório aplicado ou das atividades de musicalização.

Deixei-o a vontade com os instrumentos e peguei um violão que estava na sala.

O Menino, de posse de um tambor, marcava um ritmo constante, invariável, aplicado a todos os instrumentos: maracas, chocalho, coco...

Baseado no ritmo dele, improvisei um blues.

Num momento revesamos o violão e o tambor, então notei que não é bidestro. Mas canhoto ensinado a usar a mão direita.

Depois de algum tempo guardou todos os instrumentos na mala e preparou a capa do violão para que eu colocasse dentro.

Guardou o violão no local específico na sala, saiu apressado e sentou-se no banco do pátio.

Continuou a jogar o chinelo e nossas mochilas, inclusive pro meio da rua, por cima do portão.

Ele é ágil. Esperava algum professor ou funcionário passar e cumprimentar. Quando desviava o olhar para responder a saudação: zum, voava um objeto.

Mudei o jogo sem ser autoritário. Já que gostava de jogar coisas, busquei um dado de pano e ficamos jogando um pro outro.

Estava satisfeito. Esta atividade durou até o motorista vir buscá-lo


  1. por causa dos medicamentos, O Menino chega na escola em jejum.
  2. não foi feito nenhum exame para diagnóstico, apenas conclusão por observação.
  3. mala com instrumentos rítmicos.

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