Alguns meses antes de ser contratado, pessoas que já trabalharam com este menino me alertaram:
"Ele tem transtornos psicóticos." "Ele não fala e é agressivo." "Cuidado! Jamais deixe objetos ponteagudos perto dele, como canetas e tesouras." "Ele agride a própria mãe!" " Ele rasga os cadernos dos colégas e joga est
ojos e mochilas pela janela."
Aqui relato minhas experiências diárias como professor auxiliar num programa de inclusão numa escola pública de uma cidade agrícula no interior do sul do Brasil. Num total de 13 encontros.

Dia 03, quarta feira

 
O diário(1) solicitado ontem não se encontra na mochila do Menino.

Gostaria de ter pistas de quais atividades lhe agradam e quais lhe aborrecem, para que haja sucesso no jogo do desenvolvimento proximal.

Também descobrir o repertório musical trabalhado com ele e explorar seu gosto pela música.

Sem ter a mínima noção por onde começar, após o café fomos direto para a sala de aula.

Era aula de língua portuguesa e trabalhavam a interpretação dum texto do navegador Almir Klink. 

Lembro que no primeiro dia vi um caderno de cartografia na mochila do Menino repleto de diferentes formas de formar seu nome.

Peguei o caderno novo de cartografia do Menino e contei a ele a história do navegador Almir Klink, escrevendo o nome do navegador no seu caderno.

Depois escrevi o nome do Menino fazendo relação com as letras dos nomes dos dois.

Após um breve intervalo de silêncio, O Menino fechou o caderno e guardou-o na mochila.

Sentou-se solene como sempre faz, com ambas mãos expostas sobre a mesa. A professora de língua portuguesa veio sugerir trabalhar com as letras do nome do Menino

Saiu da sala de aula e voltou com letras em E.V.A., posicionou-as na mesa do Menino e perguntou segurando uma letra: “-que letrinha é esta?” dando a resposta em seguida: “ -é a letra que começa o nome do Menino”.

Ele olhou nos olhos dela, depois pra mim, fez um gesto como se tirasse alguma poeira da ponta do nariz e fixou seus olhos na mesa. Não prestando atenção em nada que ela dissesse ou nos movimentos com as letras coloridas.

Vendo que não obtivera resultado, sugeriu que eu prosseguisse com a atividade.

O Menino acompanhou atento o deslocamento da professora até a mesa dela. 

Depois pegou a letra de E.V.A. que iniciava o seu nome e olhando pra mim, rasgou-a e entregou-me.

A quantos anos ele é obrigado a conhecer a primeira letra do seu próprio nome? Será que ninguém percebe que ele já entendeu e quer ir além?

 De imediato lembrei do Prof. Pacheco 
contando seu primeiro dia na Escola da Ponte na Vila das Aves em Portugal

Disse a ele:”vamos guardar”. 

Estendi a mão aberta e ele depositou todas as letras, uma a uma, na palma da minha mão. Coloquei num montinho sobre minha mesa.

Nitidamente a professora não gostou de ver as letrinhas paradas na minha mesa. Demonstrou grande impaciência e O Menino também. Não sei qual a hostilidade que ambos compartilham.

De repente ele tirou um dos chinelos e jogou-o ao outro lado da sala de aula; um colega quis xingá-lo. Fiz sinal para não fazer nada. 

A professora não gostou mas não se pronunciou. Todos enfatizam que devo impor limites ao Menino.

Alguns minutos depois, lançou o outro pé de chinelo, alguém falou: “que feio! Vá buscar.”

Respondi para deixar os chinelos onde estavam e que O Menino não os buscaria porque não os queria mais, pois jogou-os fora.

Ele fixou-me com um olhar “por baixo”. Sabendo do seu histórico de agressividade e mesmo não gostando dos métodos do Skiner(2), apliquei um recurso que funciona com animais. Que é o do contato visual.

Na verdade tratava-se de um longo “jogo do sério”. Fixei meus olhos nos dele e permaneci assim até soar o sinal para a merenda.

Enquanto mantive o contato visual ele não se atreveu a fazer qualquer movimento. Apenas com os olhos, tentando fugir dos meus. 

Senti-me PÉSSIMO!

Nos primeiros minutos do recreio, ele jogou um dos chinelos. Não falei nada.

Depois de alguns minutos lançou o outro na mesma direção.

Uma criança quis juntá-los. Pedi que os deixassem no cantinho porque O Menino não os queria mais pois jogou-os fora.

Passou o recreio inteiro descalço sentado no banco interagindo com palhaçadas de meninos de outras turmas(3).

Segundo o horário escolar a próxima aula será de ciências. Na cópia que recebi há um risco a lápis sobre a palavra ciências e escrito abaixo música.

Com esta (des)informação não tinha ideia do que aconteceria a seguir. 

Quando soou o sinal para o término do recreio vi a professora de música passar. Levantei-me rápido e fui direto ao ponto, ela até assustou-se.

- No horário do Menino, a próxima aula está riscada e diz 'música'. A aula é contigo?”

Antes que me respondesse “não”, ouvi gritos de meninas. 

O Menino havia baixado até aos pés, sua bermuda e cueca. 

Corri para vestí-lo mas só deu tempo para coletar suas roupas do chão e correr atrás dele.

Segurei suas roupas na frente da barriga, cobrindo suas genitais, calçamos os chinelos e fomos ao banheiro para vestí-lo.

Ficamos pouco tempo na sala de aula. Descemos para o pátio e sentamos no mesmo banco. 

Busquei o dado de pano que ele gostou de brincar ontem. 

Jogamos umas duas ou três vezes um para o outro. Ele segurou o dado, levantou-se e foi até o baú de materiais para o recreio e depositou o dado lá.

Por ter uma mente ativa e criativa não se condiciona a atividades repetitivas programaticamente impostas. 

Isto demonstra que O Menino não tem deficit cognitivo que deva se considerar como retardo mental. 

Pena que não fala, foi condicionado a esperar que outros (família e agora professores) adivinhem o que ele quer.

 Aquele diário faz falta.

    (1) caderno onde o outro estagiário anotava as atividades diárias
    (2) na sala de professores falei disto e tive o mesmo mau estar que senti no 1º dia quando falei de Wygotsky. Senti-me um alienígena falando algo diferente deste mundo e uma hostilidade dos demais que não sabiam do que se tratava o assunto me tratando como snobe.
    (3) me pareciam mais provocações do que brincadeiras.

Dia 02, terça feira


O Menino chegou sorrindo.

Durante o café(1) notei que é bidestro.

Manipula a caneca e leva o alimento a boca com ambas mãos com a mesma destreza.

Agora teremos aula de Educação Física.

A coordenadora pedagógica da escola alertou-me que O Menino teve algumas crises durante as férias de verão, possivelmente com implicações cardíacas.(2)

Por precaução a escola decidiu não deixá-lo participar das atividades físicas.

O Menino ficou impaciente. Começou a jogar seu chinelo longe.

Estava aborrecido por não poder correr e brincar de bola com os colegas.

Cada vez que jogava seu chinelo, algum professor ou funcionário da escola, fazia cara de brabo e mandava-o buscar o chinelo dizendo:

Isto é feio!” “Não faça mais!”

Ele baixava os olhos e ia buscar a sandália, punha-a no pé e voltava a sentar-se.

Quando o adulto saía ou dava as costas, O Menino mudava a expressão facial.

Havia uma satisfação.

Não se tratava de “malcriação”, não era pelo ato de transgredir. Era pela atenção exclusiva recebida.

O ato de ser xingado era uma espécie de carinho as avessas.

Neste período, quando alguém vinha me pedir rigidez, eu explicava que também estava aborrecido por ter que ficar sentado vendo os outros brincarem.

Quando tocavam no assunto de que “não poderia” participar da aula, O Menino fixava os olhos no chão.

Em dois momentos vi lágrimas correndo no seu rosto. Ambos após ouvir que “não pode brincar”.

Mesmo sem ser especialista no assunto e nem ter trabalhado na área, sempre digo que o que define um trissomia 21 é o fato de ter um cromossomo duplicado e não falta de cérebro.

Ele é menino de 15 anos, inteligente, que compreende tudo a sua volta.

Por desinformação e graças ao senso comum, portadores da síndrome são tratados des de bebes como incapazes.

Trate alguém como estúpido des de pequeno e quando adulto é isto que ele será”

Não será num trabalho de “inclusão” de algumas horas que irá desfazer o condicionamento comportamental de uma vida toda (acho que nem aplicando Skiner).

Procurei na mochila do menino o diário do antigo professor que vi ontem, não encontrei.

Queria pistas das atividades que ele gosta de fazer e das que o aborrecem e achar uma maneira de apaziguar o menino.

Falei com a coordenadora pedagógica que queria ver o diário, ela disse que é dele e esta em casa. Que devo mandar um recado pra mãe do aluno para que coloque na mochila e não posso levá-lo para consulta. Deve ficar na mochila do aluno.

O jogo do chinelo continuou durante o recreio.

A forma de manter o chinelo no seu pé foi convidá-lo a caminhar em volta da escola.

Acho curioso a forma como ele olha para as meninas da 7ª e 8ª séries. Somente estas, as outras menores ele nem nota.

Demonstra uma expressão tranquila, corre os olhos dos pés a cabeça da menina, depois fixa o olhar por alguns segundos no rosto dela.

Se for um grupo, segue o ritual uma a uma.

Após o recreio decidi não levá-lo a sala de aula. Fomos a biblioteca. Sabia do seu gosto pela bandinha(3).

Li nos relatos, ontem, que ele gosta de música. Não havia referencia alguma do repertório aplicado ou das atividades de musicalização.

Deixei-o a vontade com os instrumentos e peguei um violão que estava na sala.

O Menino, de posse de um tambor, marcava um ritmo constante, invariável, aplicado a todos os instrumentos: maracas, chocalho, coco...

Baseado no ritmo dele, improvisei um blues.

Num momento revesamos o violão e o tambor, então notei que não é bidestro. Mas canhoto ensinado a usar a mão direita.

Depois de algum tempo guardou todos os instrumentos na mala e preparou a capa do violão para que eu colocasse dentro.

Guardou o violão no local específico na sala, saiu apressado e sentou-se no banco do pátio.

Continuou a jogar o chinelo e nossas mochilas, inclusive pro meio da rua, por cima do portão.

Ele é ágil. Esperava algum professor ou funcionário passar e cumprimentar. Quando desviava o olhar para responder a saudação: zum, voava um objeto.

Mudei o jogo sem ser autoritário. Já que gostava de jogar coisas, busquei um dado de pano e ficamos jogando um pro outro.

Estava satisfeito. Esta atividade durou até o motorista vir buscá-lo


  1. por causa dos medicamentos, O Menino chega na escola em jejum.
  2. não foi feito nenhum exame para diagnóstico, apenas conclusão por observação.
  3. mala com instrumentos rítmicos.

Dia 01, segunda feira.

Por ser o primeiro dia de aula com o novo professor, o Menino chegou à escola mais tarde.

Fui apresentado aos professores e colegas do Menino.

Embora não alfabetizado, está incluído numa turma de 6ª série.

Li alguns relatos e pareceres de professores que trabalharam com o Menino, para inteirar-me da situação.

Durante todo o período que estivemos juntos, o Menino não sorriu.

Talvez por saber que não veria mais o antigo professor.

Sou muito tímido e o Menino não fala, então não pude observar nenhuma zona de desenvolvimento proximal.

Pela falta de professor de matemática, tivemos aula no laboratório de informática.

O Menino não gosta de computadores.
Peguei algumas folhas da caixa de papel para rascunho e sugeri que desenhássemos um pouco.

De posse de uma caixa de giz de cera, o Menino rabiscou em três folhas de papel, linhas com zig zags contínuos, como os cardiogramas, apenas no lado em que haviam letras.

Depois juntou as folhas da mesa, inclusive a minha, empilhou-as dando a tradicional batidinha na mesa para emparelhá-las.

Levantou-se e depositou-as na caixa dos papeis para rascunho; retirou, uma a uma, aquelas e outras folhas de papel, voltou e distribuiu as folhas sobre a mesa.

Sentou-se e rabiscou em todas as folhas depositando-as num único monte. Cuidando para rabiscar apenas no verso das rabiscadas anteriormente.

Reuniu todas as folhas e as depositou na caixa de papel para rascunhos repetindo exatamente o proceder anterior.

Então recolheu tudo, organizou as folhas e guardou-as.

Parou na frente da minha classe e gesticulando (cruzando as mãos horizontalmente) avisava que a atividade terminou.

Guardamos o conjunto de giz de cera em sua caixinha e fomos para um banco no pátio esperar o motorista buscá-lo.


   -ele me deu sua maçã da merenda.
   -professores disseram que ele não gosta  de escrever e nem de pegar giz de cera na mão.
   -acho que vamos nos entender bem.