Alguns meses antes de ser contratado, pessoas que já trabalharam com este menino me alertaram:
"Ele tem transtornos psicóticos." "Ele não fala e é agressivo." "Cuidado! Jamais deixe objetos ponteagudos perto dele, como canetas e tesouras." "Ele agride a própria mãe!" " Ele rasga os cadernos dos colégas e joga est
ojos e mochilas pela janela."
Aqui relato minhas experiências diárias como professor auxiliar num programa de inclusão numa escola pública de uma cidade agrícula no interior do sul do Brasil. Num total de 13 encontros.

Dia 04, quinta feira


Finalmente poderei consultar o diário do outro estagiário.

Aproveito o momento em que O Menino faz seu café para lê-lo.

O diário é horroroso!

Não diz nada que seja útil para quem tem a tarefa de dar continuidade a um trabalho de inclusão.

Não há descrição das atividades, limita-se a um paragrafo de poucas linhas. Algo como: “hoje trabalhamos com as letras do nome do Menino ”.

Não há referencia alguma do repertório usado nas atividades de musicalização.

A única referencia que encontrei foi de um dia que ficou só na escola(1) e dançaram a coreografia do “ai, ai, se eu te pego”

Durante a aula de matemática resolveu ajeitar os mapas presos na janela ao nosso lado.

Depois penduramo-os na parede do fundo. Ficou melhor.

Tem dois meninos , ambos com mesmo nome, que se divertem muito com O Menino.

Um é mais esperto, do tipo “mau aluno inteligente”, faz caretas e gesticula pro Menino, e este o acompanha.

O outro é dispersivo, um falso malandro; faz qualquer coisa pra não fazer nada, sempre atrasado nas tarefas e em voz alta fica incitando O Menino para folia e chamando a atenção da turma para verem O Menino.

É boa a interação mas indevida.

O trabalho de inclusão não deve incluir perturbação das atividades escolares das demais crianças.

Um dos meninos, cobre o rosto com as mãos e de súbito descobre o rosto virando-se e dizendo: “boo”.

O Menino ri muito e repete a brincadeira.

O recreio pareceu animado até a chegada daqueles meninos que ontem brincavam com O Menino.

Foi difícil fazê-los parar de tentar ensinar O Menino a “brincadeira do momento”.

Eles seguram o braço do Menino, fecham sua mão e direcionam para a genitália de um dos colegas dizendo: “Bate forte, assim. É divertido.”

Durante toda a semana vi meninos correndo e soqueando livremente seus testículos durante a hora do recreio.

Parece que as professoras de plantão divertem-se com as caretas dos meninos alvejados.

Minutos antes de soar o sinal as brincadeiras tornaram-se estúpidas.

Começaram a puxar O Menino pelos braços e empurravam uns aos outros com violência sobre O Menino.

Quando voltamos a sala de aula O Menino estava bastante agitado e seus colegas ainda mais.

Haviam jogado futebol durante o recreio, eufóricos falavam muito alto e batucavam nas mesas.

O Menino acompanhava o batuque.

Para tirá-lo daquele ambiente elétrico, a professora de artes pediu que O Menino ajudasse a levar os rolos de papel higiênicos pra cozinha.

O Menino é prestativo e gosta de organizar as coisas.

Descendo as escadas, O Menino foi me entregando seus rolos de papel higiênicos, um a um.

Quando estava com as mãos vazias, já no piso térreo, empurrou-me na altura dos ombros, usando as duas mãos (como lhe fazem os meninos da outra turma).

Não entendi esta reação.

Se fez por achar divertido ou pra protestar achando que sou o responsável pelo fim da folia da sala de aula.

Depois fomos até a biblioteca separar alguns potes de tinta.

A professora entrega o pote ao Menino e ele deposita na caixa que seguro.

Mudamos de local na sala e a caixa começa a ficar pesada.

Por segundos abaixei-me para por a caixa no chão e buscar uma cadeira.

Não falei a ninguém desta minha intenção, apenas abaixei-me.

Aproveitando este momento, O Menino abriu um pote de 250ml de tinta acrílica e despejou na minha cabeça.

Fantástico! Muito bom!

Uma prova contundente de que seu cérebro é ativo, capaz de criar improvisos a partir de situações inusitadas.

Contrariando o suposto atestado de psicótico, que é aquele que planeja seus atos e não descansa até que os execute, O Menino foi espontâneo.

Se ele imitou alguma cena da TV, não sei.

Mesmo se for, associar o fato de ter um pote de tinta na mão, ver alguém que deveria estar em pé baixar-se, num impeto abrir o pote e antes que o outro levante derramar na sua cabeça é porque as sinapses estão acontecendo.

Ele não é um retardado mental.

(1 )neste dia a escola participou das olimpíadas de matemática

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